sexta-feira, 21 de junho de 2013

tentando entender as manifestações

Ontem estive presente na manifestação de rua de Fortaleza. Confesso que o sentimento que mais mobilizou minha ida foi a curiosidade. São muitas opiniões sobre o mesmo tema e me arrisco a dizer que quase todas, com exceção das de natureza fascista, tem a sua razão, a partir da ótica de quem vê. A experiencia vivida me motivou a escrever um pouco sobre o assunto:

Não há nenhuma novidade na realização de manifestação de rua no Brasil. Nem existe uma premissa que toda manifestação de rua tem legitimidade. A ditadura militar no Brasil foi implementada e fundamentada a partir de duas grandes manifestações de rua, uma popular que defendia o aprofundamento das reformas de base que estavam sendo implementadas pelo presidente João Goulart, e outra de natureza elitista e reacionária que se opunha a estas reformas e acusava o governo Goulart de corrupção e de tentativa de implantar o regime comunista no Brasil. A manifestação conservadora foi inflada pelos grupos de comunicação de massa, mas mesmo assim, acredito que a grande maioria daquelas pessoas, mesmo conservadoras, não estavam defendendo um golpe e uma ditadura militares, embora tenham contribuido diretamente para isso.

Na década de 80, após a reabertura democrática, o Brasil viveu uma primeira onda de manifestações de rua de caráter pluriclassista mas com uma pauta claramente identificada: a reabertura democrática e a realização de eleições diretas.

Durante toda a decáda de 80, o Brasil encarava com naturalidade a realização de diversas manifestações de rua, todas desencadeadas por organizações de esquerda e cada uma com demandas específicas de melhoria da vida do povo trabalhador. Estas mobilizações eram, na sua maioria, convocadas pela CUT e pelo MST, organizações de esquerda com atuação prioritária na cidade e no campo respectivamente.

No inicío da década de 90, outra onda de manifestações pluriclassistas se efetivou com o objetivo do impeachment do presidente Collor de Melo. Esta onda de manifestações contou com irrestrito apoio da grande mídia, contrariada pela determinação daquele presidente em instituir seu próprio esquema de poder e comunicação, em detrimento das oligarquias já constituídas. As organizações de esquerda, ainda amplamente mobilizadas pelo processo eleitoral de 1989 e identificando o caráter neoliberal daquele governo, deram consistência e viabilizaram as manifestações.

O "Fora Collor" merece uma reflexão especial, por guardar muitas similaridades com os atos atuais.

O primeiro fato foi a posição de Leonel Brizola que decidiu cerrar fileiras com Fernando Collor para o enfrentamento de um adversário comum, a Rede Globo.

O segundo fato foi que o "Fora Collor", mesmo com suas manifestações de rua lideradas por organizações de esquerda, somente deu visibilidade à pauta anti-corrupção, despolitizando a atividade e personificando em uma pessoa as mazelas próprias de um sistema que se iniciava seu aprofundamento com as medidas neoliberais.

O resultado daquela onda de manifestações foi o fortalecimento de um campo político comandado pelo PSDB que aprofundou as medidas neoliberais e não somente manteve o sistema baseado na corrupção, como a institucionalizou, esfregando-a na cara do povo brasileiro com as privatizações e o PROER. Brizola, as organizações de esquerda, o povo brasileiro, todos perderam.

Criou-se pela grande massa, manipulada pelos meios de comunicação, a sensação do dever cumprido, e as manifestações de rua passaram a ser protagonizadas pelos excluídos e a serem extremamente criminalizadas. Extermínios contra mobilizações no campo, que sempre aconteceram na história no Brasil, conseguiram ter visibilidade graças as ações do MST que culminaram com seu grande ato de mobilização no final da década de 1990.

As organizações que construiram historicamente estes ciclos de mobilização sofrem uma cisão a partir da década de 2000 com a eleição de Lula para a Presidência da República. O PT aprofunda um processo de institucionalização já em curso. A CUT se mantem diretamente ligada ao PT e em linhas gerais adota a mesma estratégia. O MST e outros movimentos surgidos a partir deste mantém sua autonomia, promovendo mobilizações de cobrança ao Governo, mas identificando-o como espaço em disputa. Os partidos políticos que vieram de cisões do PT, como o PSOL, priorizam, assim como o PT sua atuação na política institucional com uma postura de oposição total, mesmo que isso, por vezes os levem a alianças pontuais institucionais com partidos de direita. Diversos movimentos sociais se fragmentam e passar a atuar pontualmente seja por temática, seja geograficamente. A solidariedade naquele campo de esquerda se desfaz. É cada um por si.

O Governo Petista não se propos a realizar transformações estruturantes na relação de Poder, o que dá bastante fôlego para a máquina reacionária se organizar. A proposição é de fazer um governo de conciliação de classes o que funciona até um certo ponto, mas sem dúvida é um considerável avanço em relação ao ciclo anterior. Através de medidas macro-economicas logra êxito em promover inclusão econômica. Através de medidas de organização do Estado consegue sucesso no processo de inclusão social. Tudo isso aquém do que poderia se se propusesse a enfrentar poderes estabelecidos. Tudo isso muito além do que poderia a partir da escolha que fez. Sem dúvida houve muita competência na arte de pisar em ovos.

Quem é moderado, no campo ideológico da esquerda e da direita, na classe trabalhadora e na classe empresarial aprova quase que integralmente este ciclo de poder. Entende a política como um campo de mediação, mesmo que esta implique em conviver com a corrupção e com o fisiologismo.

Importante entender que um dos principais pontos que mobilizam as insatisfações e seu caráter pluriclassista ocorre no campo das radicalidades, seja daqueles que entendem a necessidade de enfrentamento ao capital e suas estruturas ideológicas, seja daqueles que se incomodam com a inclusão, com os impostos do Iphone, com a lei das domésticas, com as bolsas de assistencia social, com as cotas nas universidades e com o prouni, sejam daquelas corporações saudosas do tempo do neoliberalismo.

Seria talvez o novo "Fora Collor" que não virou ainda "Fora Dilma" pela ausência de um fato motivador? Fato este que pode ser facilmente criado pela Veja ou pela Rede Globo?

Não se pode afirmar isto. Todavia esta marcha coletiva pluriclassista que funcionou no Fora Collor não era tão influenciada pelas radicalidades como a atual e creio que isto seja o indicativo, já em concretização em São Paulo, de que é impossível manter um anarquista ao lado de um fascista em uma manifestação. Vejo sinais de que o processo interno destas manifestações começa a reconstituir um sentimento de solidariedade de esquerda e que mesmo aqueles que se opõem diretamente ao atual governo, não desejam transformar estes atos num novo "Fora Collor".

Por outro lado, sempre há o risco que as organizações de direita mobilizem a massa conservadora e o movimento deles ganhe autonomia. Isso me preocupa menos. Mobilizações integralmente de direita geram repulsa na grande maioria da população. Dá pra ter mauricinho em passeata, mas ninguém aguenta passeata só de mauricinho.

De qualquer maneira é muito positivo se voltássemos a incorporar o ato de manifestar-se ao nosso cotidiano. Na nossa vizinha Argentina isto já é visto com muita naturalidade. O processo de debate público sobre a realidade brasileira, provocado pelas manifestações, é totalmente desfavorável aos fascistas, mesmo com todo esforço manipulatório da grande mídia. A dificuldade em identificar temas centrais mobilizatórios nos atos é indicativo disso. Na década de 1980 e 1990 as marchas estavam pedindo comida e emprego. Temos lacunas sérias na saúde, educação, transporte público, mas existe em geral uma sensação de que a vida está bem melhor que antes.

A grande lacuna e o segundo ponto que explica esta explosão está no campo do poder. Os manifestantes, hegemonizados pela juventude, estão pedindo poder. Este é um fenomeno mundial. A democratização da informação viabilizada pelo mundo virtual nos dá a sensação de possibilidade de intervenção direta na política. Isso ameaça os governos, mas ameaça sobretudo os mercados, detentores do poder real. As manifestações na Europa se aprofundaram porque os parlamentos, principalmente nos países onde a crise econômica foi mais cruel, aprovaram medidas totalmente dissonantes do sentimento da população.

Este processo deve ser visto com bons olhos, mas com muita atenção, pois há claramente uma tentativa do mercado de armar uma arapuca capitalizando este sentimento somente contra a política institucional para esvaziá-la totalmente e deixar a utopia do capital se realizar: o Governo dos Mercados. Bacana juntar gente que pensa diferente se a pauta é democracia direta, mas para isso temos que transformar a política e não acabar com ela.

Saudações,

Demitri   

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Saúde é o que interessa

Bom, este é um blog de opinião então, depois de refletir um bocado resolvi arriscar e entrar em um assunto que não domino completamente, mas me senti instigado a tratar sobre depois de alguns debates no facebook.

O Direito à Saúde é um Direito Humano, assim como o Direito à Educação, desta forma, em tese, não deveria ser objeto de atividade mercantil. Países com alto nível de efetivação destes direitos conseguem manter esta premissa, mas são poucos estes países. Algumas potências econômicas mundiais como os Estados Unidos, sequer reconhecem a saúde pública como um direito. A efetivação do Direito Humano à Saúde encontra dois obstáculos intensamente interligados, o alto custo do sistema e a oposição de interesses que pretendem manter o mercado de saúde.

O Brasil se propos, com a criação do SUS, a universalizar um sistema de saúde pública para uma população gigantesca, atualmente 200 milhões de pessoas, universalizando progressivamente a cobertura. A cobertura do SUS é mais ampla do que a de qualquer plano de saúde privado. Todos os brasileiros, mesmo aqueles que pagam planos privados de saúde são de alguma forma beneficiados, pelo menos potencialmente pelo SUS, seja pela estratégia de saúde da família, seja para o tratamento de emergências.

O mercado privado de saúde adota um modelo de super estimular as especialidades e esta lógica é a lógica atualmente hegemônica na academia médica. A grande maioria dos estudantes de medicina se forma com foco nesta estratégia. A estratégia do mercado de saúde "deseja" que as pessoas fiquem doentes e indica o especialista para aquela enfermidade, tornando o custo e consequentemente o lucro mais alto. Mesmo com salários diferenciados em relação da maioria das ocupações, devemos sempre lembrar que os médicos também são trabalhadores explorados pelo capital.

A ofensiva da rede pública de saúde se propôs a inverter esta lógica e investir na saúde básica e preventiva através de uma estratégia mais racional tanto do ponto de vista econômico como do ponto de vista humano, a estratégia do médico da família, desenvolvida em Cuba e bem sucedida em todo lugar em que foi adotada. Todavia a mesma demanda dois desafios hercúleos: melhorar a qualidade do SUS e superar o modelo privado hegemônico.

A qualidade do SUS está vinculada a um problema de financiamento que atinge os três entes federativos e cuja última estratégia proposta, a CPMF, enfrentou uma fortíssima campanha dos setores financeiros que seriam duplamente atingidos, pela taxação e pelo controle de divisas e foi derrotada. Todavia, a gradual mudança da lógica do sistema, se bem sucedida, tenderá a reduzir demanda nas redes de atendimento secundária e terciária, mais caras.

O outro desafio é bem mais complexo. O modelo privado de saúde está politicamente fortalecido nas academias e entidades de classe médica. O episódio da "importação" de médicos para atuarem nos programas de saúde de família, demandada principalmente pelos prefeitos brasileiros não pode ser considerada uma solução definitiva, mas tão somente uma demanda contingencial e emergencial. É preciso, de alguma forma, democratizar o debate sobre saúde pública com a incorporação de outros pontos de vista, principalmente dos usuários do sistema. A forma como o tema vem sendo debatido pelos Conselhos de Medicina desconsidera a existência de um problema com o modelo, não propõem alternativa à medida.

Uma regulação da carreira médica pública poderia ser uma solução, desde que fosse uma carreira exclusivamente pública com a eliminação da esquisita e corporativa excessão prevista na Constituição Federal para o acúmulo de funções. Médicos públicos de dedicação exclusiva.

Por fim, levanto apenas uma preocupação para que este e outros episódios semelhantes não alimentem uma semente de xenofobia em nosso país, nada seria mais contraditório com a formação cultural do nosso povo.

Saudações Fraternas,

Demitri

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Crise entre Poderes.

Uma das mais intrísecas facetas da natureza humana se refere ao permanente dilema entre conservar e mudar. Nem conservar nem mudar são absolutamente positivos ou negativos, o importante é o equilíbrio entre os dois sentimentos, que se tenha um ambiente propicio ao diálogo entre os dois movimentos.

Nossa geração nasceu e naturalizou um modelo de Estado estável. Este modelo surgiu como uma necessidade / resposta à conjuntura político social da época e resultou em uma afirmação da distribuição do poder político através de dois mecanismos principais: a instituição do voto como modo de escolha dos governantes e legisladores e a instituição da lei como forma universal de disciplinamento social. A organização destes poderes, antes concentrado na autoridade real, resultou na constituição em poder autônomos para legislar, governar e julgar.

Sem sombra de dúvida este modelo, que experimentamos até hoje, manteve-se estável e se universalizou em todo o mundo "ocidental". Naturalmente o modelo proposto, pela sua própria natureza, sobrevive e aperfeiçoa-se em virtude dos conflitos entre os diversos poderes. Com certeza, pesam sobre todos os poderes as imperfeições da nossa democracia pela metade, pois ao não democratizar outros poderes, principalmente o poder econômico e financeiro, submetem aqueles às vontades e aos interesses destes.

As únicas direções possíveis no sentido de aprofundar a democracia residem em aprofundar a democracia política ou incidir sobre a democratização dos poderes econômicos. As instâncias democráticas de controle social sobre os poderes devem ser aprofundadas e atividades econômicas essenciais como a comunicação, a saúde e a educação demandam maior controle e participação popular.

A recente "crise" estabelecida entre os Poderes Judiciário e Legislativo se motivaram por circunstâncias e interesses, de lado a lado, bastante, senão, totalmente alheias aos reais interesses do povo brasileiro. Todavia a única equação possível, a único moderador possível existente para conflitos desta natureza é a manifestação direta popular. Os aparatos de comunicação da modernidade permitem o acesso do povo às decisões políticas de forma cada vez mais direta. Outros países da América do Sul, como Argentina, Venezuela, Bolívia e Uruguai vêm fazendo, cada um a sua maneira e respeitadas as distintas peculiaridades, reformas democratizantes do Estado. Precisamos inverter a lógica na qual os representados se submetem aos representantes.

É, ao meu ver, totalmente inadmissível que um dos Poderes da República não se submeta a qualquer controle popular direto (o CNJ é um colegiado de representações corporativas), bem como que se permaneça a influência livre do poder econômico nos processos eleitorais brasileiros submetendo todos, até mesmo aqueles que assim não o desejam, a mediações com interesses econômicos.

Saudações,

Demitri  

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Dia de Índio no Congresso Nacional

O ato político causado por diversas etnias indígenas no Congresso Nacional causou um impacto desproporcional ao tamanho do ato pela radicalidade que consistiu ocupar o espaço símbolo do legislativo nacional. Não faltaram vozes para identificar no ato um atentado à democracia, já que se estava impedindo o regular funcionamento do legislativo brasileiro e que aqueles que lá estavam eram os representantes eleitos de todo o povo brasileiro.

Estas mesmas vozes se valem de um argumento aparentemente minimizador de danos, mas extremamente pernicioso, que é atribuir às etnias indígenas a marca da barbárie e do primitivismo, em uma concepção, ou do oportunismo em outra, celebrando o genocídio ao afirmar a inexistência de comunidades indígenas no Brasil. Os dois perfis reducionistas: o do índio simbolo da pureza, ingênuidade e ausência da maldade branca e o do índio civilizado ou que deve sê-lo são amplamente utilizados em outras situações de conflitos de interesses alheios às comunidades indígenas. O caso de Belo Monte é atualmente o exemplo mais emblemático disto.

Em síntese, existe uma grande dificuldade de aceitação das comunidades indígenas como civilizações específicas e que devem ser protagonistas da sua história, sem a pretensão de retomarmos a mania branca de catequização, religiosa ou não, bem-intencionada ou não (até porque de boas intenções o inferno está cheio) ou de extermínio puro e simples.

A Bolívia aparentemente deu uma formulação positiva à questão, reconhecendo-se como um Estado Plurinacional e conferindo autonomia aos ordenamentos jurídicos das comunidades tradicionais, reconhecendo que o aparato institucional branco-ocidental é somente um dos aparatos e trabalhando para a convivência entre estes. Lógico que isto implica em não sermos seletivos no respeito às comunidades tradicionais, implica a grande contradição de reconhecer às "boas" e "más" praticas do nosso ponto de vista ocidental-cristão. Nem implica que este é um processo sempre pacífico. O que se aplica é o melhor método para resolução dos naturais conflitos.

Neste sentido é essencial compreendermos a questão da Terra para a maioria das comunidades originais da América do Sul. A Terra não é só um espaço para estar e para trabalhar, a relação de identidade de um povo está vinculada a sua Terra. Sem aquela Terra deixa de existir aquele povo. Isto já ficou bastante claro com a reação dos índios Guarani-Kaiowá.

Portanto a ameaça implícita à Terra Indígena, já que a medida de vincular ao Congresso as demarcações submete esta aos interesses da bancada ruralistas, e a simbologia desta Terra para os Povos tornam bastante desproporcional, em favor dos índios, o ato que estes praticaram. O mais apropriado talvez, seria uma ocupação do Banco Central e dos bancos, já que o motor da nossa atual civilização é o dinheiro. O símbolo de democracia do Congresso Nacional para os padrões hegemônicos é um símbolo muito menor do que a Terra Indígena para suas diversas civilizações.

Saudações,

Demitri 

terça-feira, 16 de abril de 2013

Redução da Maioridade Penal - Um mergulho sobre o tema

As propostas de redução da maioridade penal ciclicamente ocupam a pauta pública, praticamente sempre motivada por crimes de morte praticados por adolescentes, praticamente sempre de classe alta ou classe média, ou seja, "um de nós". Certamente isto não ocorre por acaso. Tenta-se, desta forma, simplificar uma realidade específica complexa, utilizando-se de forte apelo emocional, misturando-a com uma discussão de natureza institucional, com uma ação de Estado que é universal e válida para todas e todos. Este estratagema coloca, mesmo que inconscientemente, aqueles que são contrários à redução como coniventes com os assassinatos e com a impunidade, ao passo que aqueles que defendem a medida se tornam, por encanto, defensores da justiça e da vida. Bela cortina de fumaça.

Pouco importa se jovens, maiores ou menores de 18 anos, matam e são mortos de forma avassaladora nas periferias das nossas metrópoles. Estas mortes não vem acompanhadas de verificação de idade em carteira de identidade e ocorrem em ambos os casos de forma indiscriminada. Estas mortes ocorrem nos espaços onde a presença do Estado-Polícia Repressiva é mais intensa e onde são menores as taxas de impunidade.

A definição dos conceitos de infância e adolescência não são constantes na história da humanidade. Já houveram tempos que o tratamento em relação ao que definimos hoje como criança fossem indiscriminadamente os mesmos em relação aos adultos. Não existia "menoridade penal" como não existiam trabalho infantil, estupro presumido de crianças e adolescentes, nem educação formal, pelo menos no sentido como conhecemos hoje, enfim vivíamos em um estágio de semi-barbárie.

Os conceitos de infância e adolescência, baseados em critérios científicos e culturais, são portanto, um passo civilizatório essencial para a formação da sociedade em que vivemos hoje. Definimos, como civilização, que a principal missão para as crianças e adolescentes é o processo educativo e que este seria de responsabilidade dos adultos, que já passaram por todos estes processos quando crianças. O desenvolvimento dos conhecimentos humanos em larga escala ocorrido nos últimos séculos está diretamente vinculado a esta decisão da sociedade. Da energia elétrica, ao computador, passando pelas teorias sociais, que propiciaram o desenvolvimento economico e social atual, devemos tudo isto a termos definido que existem crianças e adolescentes.

De certa forma, o tratamento que damos às crianças e adolescentes representam o que há de mais evoluído no que conseguimos tratar os outros seres humanos. A melhor forma de tratar o outro é a forma como tratamos nossas crianças (e olha que precisamos melhorar neste sentido). Desta forma, o farol de evolução de uma civilização não é levarmos tratamentos que damos os adultos às crianças e adolescentes, mas justamente o contrário disto.

Em épocas bárbaras, sem a proteção do Estado Democrático de Direito que, na teoria, garante o tratamento igualitário e o direito à defesa, o tirano de plantão não só definia o tratamento a ser dado a quem não se enquadrasse como definia, caso a caso, o que era ilícito. Desta forma, derramar café no colo do Rei poderia implicar em punição mais dura do que matar. O sentido da pena era o castigo, puro e simples, justiça era sinonimo de vingança e o castigo deveria ser doloroso como exemplo para os demais.

Um dos principais argumentos públicos dos defensores da redução da idade penal é a mesma lógica das torturas medievais, incutir medo como forma de garantir determinado tipo de comportamento.

Como já escrevi em outros textos, a força da desobediencia ao status quo e a permissividade à desobediência pelo poder estabelecido é o que permite o desenvolvimento progressivo e pacífico de uma sociedade. Galileu e Copernico foram considerados subversivos. Uma sociedade de repressão absoluta é um convite à violência dos inconformados e quanto mais intensa a repressão mais intensa à violência.

O sistema de atendimento sócio-educativo, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente vislumbra, mesmo que timidamente, uma evolução entre os sistemas de responsabilização criados pela sociedade. O sistema jurídico penal prisional, atualmente hegemônico, já garante um tratamento, em tese igualitário e um aparente compromisso na ressocialização do preso, embora na prática pouco disto se veja. A principal diferença que encontramos é que a mensuração da quantidade e da qualidade/tipo de "pena" no sistema sócio-educativo é acompanhada permanentemente a partir do processo de socialização do adolescente. Temos graves problemas de execução em ambos os modelos, mas dados, já amplamente divulgados por defensores da atual idade penal mostram maiores índices de punibilidade e menores índices de reincidência.

Na verdade entendo que o desafio é outro, é incorporar elementos do sistema de atendimento sócio-educativo ao sistema prisional como o acompanhamento permanente da quantidade e qualidade da pena e um maior acompanhamento social e principalmente psicológico ao preso. O objetivo da prisão para o Estado não é a vingança, embora seja legítimo que para a vítima o seja. Compreender o fenomeno do crime, do ponto de vista do preso, é importante socialmente para compreender os processos sociais que levam à criminalidade.

Evidentemente que muitos daqueles que protagonizam a defesa da redução da idade penal tem a plena consciência de que a mesma não será aplicada em termos práticos aos seus, dada a seletividade financeira do sistema judicial e penal, tão cheio de lacunas legais e estruturais para quem tem patrimonio, ou partem de uma perigosa premissa, de que os seus, por razões culturais ou religiosas estão imunes a serem os outros, os bandidos. Prefiro compreender o fenomeno da criminalidade como resultante das limitações humanas, como indivíduos, mas principalmente das nossas incapacidades e limitações como ser coletivo social.

A grande cortina de fumaça que se cria, com esta medida ou outras da mesma natureza é que se restringe mais direitos em defesa do controle social e praticamente não se trata do fenomeno da violência. Nem da sua esfera mais simples, o crime em si, que tem sua raiz em redes de crime organizado que nunca são efetivamente enfrentadas, que não estão nas periferias, mas nos grandes centros de poder, justamente para controlar mais esta periferia. Nem nas razões primeiras da violência: uma sociedade que se torna cada mais totalitária, que cada vez mais cria sentimentos de competitividade, frustação e negação, que impõem condutas aceitáveis para instantaneamente negá-las.

Saudações,

Demitri

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Casa Grande e Senzala nos Dias de Hoje

Aconselho a todas e todos fazer um exercício diário de reflexão sobre a adequação daquilo de falamos com aquilo que fazemos. Isto serve tanto para escaparmos da hipocrisia como para relativizar a dureza com que por vezes tratamos nossos interlocutores. Herdamos de forma muito intensa alguns hábitos e comportamentos que reconhecemos como naturais, mas que mesmo não suportando 15 minutos de reflexão de tão absurdos, temos dificuldades de superá-los, no individual e no coletivo. O machismo e a homofobia estão nesta categoria.

O tema que venho tratar agora se enquadra nisto também. A regulamentação dos direitos das empregadas domésticas e dos empregados domésticos estão gerando manifestações as mais absurdas possíveis.

O principal problema que identifico é o vício, que cidadãs e cidadãos de classe média e classe rica incorporaram, desde a infância (me incluo nesta análise) de ter alguém contratado para executar os mais simples afazeres domésticos, mesmo com toda a tecnologia disponível hoje. Como este hábito não é compartilhado por vários países europeus, por exemplo, é facil identificar a relação deste com o histórico de escravização do nosso País. Nestes países existem bem mais serviços de lavanderia, creches, etc. O pior é que este vício torna a nossa existência no lar totalmente alienada daquilo que permite que ele funcione, por vezes minimiza até a necessária, para o desenvolvimento da criança, convivência familiar entre mães, pais e filhas e filhos.

Esta situação ainda é mais delicada com o hábito de contratar profissionais que "dormem" no trabalho, que na prática significa ter alguém a disposição 24 horas por dia para servir. Desta forma teremos profissionais que não possuem seu espaço próprio de vida, seu próprio lar, e geralmente não possuem também vida social autônoma. Muito incômodo.

Nada contra contratar, eu mesmo sou um empregador doméstico, mas possivelmente nossa contribuição neste processo seria bastante educativa para as nossas crianças terem uma formação diferente, neste aspecto, da nossa.

Outro ponto que me causa profundo estranhamento é a alegação que se utiliza para diferenciar o trabalho doméstico do não doméstico: o primeiro não produz resultado financeiro. O mesmo discurso que descaracteriza a dupla ou tripla jornada de trabalho das mulheres que acontece majoritariamente nos lares brasileiros. Trabalho que não serve ao Capital não é trabalho. Sei que diversão é que não é. A exploração do trabalho é a mesma e a necessidade de subsistência também.

Desta forma acho prudente um exercício simples de se colocar na pele do outro, ou de pelo menos reconhecer o outro como o outro e não apenas mais um artefato da sua casa, antes de verbalizar preconceitos e protestar contra as mudanças da lei. Quem quer manter o conforto de contratar um empregado ou uma empregada doméstica arque com suas obrigações e quem quiser mudar de hábitos, o faça. Felizmente nosso Brasil tem demonstrado uma grande capacidade de inclusão e outras oportunidades surgiram para os trabalhadores e as trabalhadoras.

Saudações,

Demitri

segunda-feira, 1 de abril de 2013

A Ditadura Cívico-Militar Hoje

Ontem, 31 de março, fizeram 49 anos do golpe militar contra o Governo Democrático de João Goulart que instituiu um regime ditatorial que, valendo-se do poder das forças armadas brasileiras, mas claramente na defesa de interesses econômicos privados e imperialistas esmagou qualquer resquício de democracia em nosso país e condicionou toda a força econômica nacional a interesses internacionais privados.

O processo de ditaduras na América do Sul ocorreu quase que simultaneamente e decorreu da aplicação de um princípio, adotado pelas grandes potências mundiais capitalistas na época, de condicionar a direção do continente americano ao governo norte-americano e às corporações capitalistas que lhe davam sustentação.
A justificativa utilizada para este e outros atentados à democracia pelas duas potências que dualizavam o poder mundial naquele período: Estados Unidos e União Soviética era a Guerra Fria na qual cada um dos regimes autoritários demonizava o outro. Os governos sul-americanos que sofreram este processo, ressalte-se, como o de João Goulart, sequer tinham pretensões de mudança de regime econômico e mesmo se o fizessem teriam legitimidade se esta mudança fosse ancorada em apoio popular.

A percepção majoritária das populações dos países do Cone Sul hoje sobre as ditaduras ocorridas há cerca de 50 anos minimiza as arbitrariedades cometidas, legitima parcialmente os golpes militares pelo menos co-responsabilizando os governos populares antecedentes e as ações dos grupos de resistência, identificam a censura aos meios de comunicação como a principal violação de direitos e praticamente ignoram os crimes contra a soberania econômica nacional promovidos por estes regimes. Lógico que temos variações nestas percepções, estando a Argentina em um extremo positivo e o Brasil em um extremo negativo, neste sentido. Tal fato explica-se parcialmente por um histórico de autoritarismo que sofreram nossos países que não se iniciou nem se encerrou com as ditaduras. Até hoje se legitimam diversas posições contra o livre direito de ir e vir, por exemplo, como recolhimento compulsórios de pessoas e restrição de locomoção de certos perímetros urbanos.

Esta distorcida percepção majoritária nos indica claramente a manutenção de todo um aparato estrutural e ideológico do autoritarismo presente ainda na nossa sociedade, gestando e implementado naquele período e, pior, que obteve êxito na sua ação.

Neste sentido que, as ações de visibilidade pública sobre os horrores cometidos e os trabalhos da Comissão da Verdade se fazem válidos ainda hoje porque, de alguma forma, aquela violência ainda encontra-se no meio de nós. Faz-se necessário promover o diálogo entre o passado e o presente sempre.

Dois mecanismos de poder instituídos pela ditadura cívico-militar brasileira ainda são bastante visíveis hoje:

a) Militarização da Polícia

Não estamos falando de pessoas. Como coletivo as Polícias Militares reunem pessoas diversas, felizmente. A lógica de militarização da ação da Polícia ultrapassa as instituições policiais. Esta lógica está presente nos programas policiais mais do que nas polícias. Parte-se da premissa do controle social prévio. As polícias civis, que objetivam dar solução aos delitos cometidos e criar meios para desbaratar redes criminosas são esvaziadas do seu papel e não estão protegidas da corrupção. As polícias comunitárias inexistem. A doutrina da ordem política e social ainda se encontra fortemente presente entre nós e, como sempre, o principal alvo a ser controlado é a juventude.

b) Poder ilimitado às empresas privadas de comunicação

Todo o aparato de comunicação privada hegemônico em nosso país, principalmente as grandes redes de televisão nacionais, foram projetados para servir a ditadura cívico-militar brasileira. A grande piada é que eles adoram se colocar como vítimas por conta de uma novela ou uma apresentação musical censurada. A ausência de controle social ao exercício do Poder Público de comunicação, seja para empresas privadas ou públicas faz parte dos Estados tidos como mais civilizados. A regulamentação da publicidade da mesma forma.

Subverte-se um proposta democrática taxando-a de autoritária.
 
Portanto, ao denunciar ou escrachar o dia 31 de março, sempre é positivo identificar como esta ditadura que denunciamos ainda encontra-se presente e deixar claro que, de alguma forma, o 31 de março de 1964, ainda está entre nós, não só como memória.

Saudações,

Demitri